Opinião sobre a Síria

sexta-feira, 3 de agosto de 2012
Lembram da Líbia? Agora chegou a vez da Síria.




Opinião - DN - Hoje:
 
"Fazer alguma coisa" na Síria

por José Manuel Pureza

A história recente do Médio Oriente é a história da falência dos impérios naquela região e a da glória e miséria da implantação do Estado moderno, laico e nacionalista por elites locais. Foi assim nos despojos do império britânico (Arábia Saudita, Iraque, Palestina) e do império francês (Líbano e Síria). Em todos estes lugares, os mandatos da Sociedade das Nações deram lugar a nacionalismos modernizadores que invariavelmente se tornaram em ditaduras sangrentas que agora explodem sob a pressão incontível das lutas pela democracia.

A Síria é um caso típico desta trajetória. Ali, o nacionalismo secular, protagonizado pelo Partido Ba'ath, degenerou em controlo dinástico pela minoria alauita e em todas as perversões das mais estúpidas ditaduras. O apoio de Moscovo antes e a sedução dos Estados Unidos depois (a Síria chegou a ser um dos entrepostos de sub-contratação de tortura durante a "guerra contra o terrorismo") adiaram o inadiável: a implosão da ditadura e a emergência de revoltas pela democracia.

Aqui chegados, há duas observações a fazer. A primeira é a de que a História não é uma realidade a preto e branco. É um embuste a sua apresentação como enfrentamento entre anjos e patifes. Uma análise séria exige que se reconheça que o regime de Damasco é odioso - e que as revoltas populares não são um mero complot fabricado na Virgínia - mas exige também que não se oculte que "a oposição" está longe de ser a expressão da virtude. O Observatório Sírio de Direitos Humanos, citado como "fonte credível" das chacinas, é uma pessoa (Rami Abdulrahman) que vive em Coventry. Os principais dirigentes do Conselho Nacional Sírio são membros de think tanks conservadores norte-americanos como o Council on Foreign Relations ou a Henry Jackson Society. Retira isto legitimidade à luta dos sírios pela democracia? Nenhuma. Mas põe em evidência as estratégias de infantilização que pintam às opiniões públicas a guerra na Síria como algo entre imaculados e satânicos para delas obter reações emocionais.

E entra aqui a segunda observação. Lembram-se da Líbia? Lembram-se dos relatos diários de massacres sempre mais sangrentos e com mais vítimas indefesas, incluindo, como é da praxe comunicacional, "mulheres e crianças"? Deram-se conta de que, no momento em que começou a intervenção da NATO, a contagem de vítimas foi substituída por relatos asséticos da sucessão de tomada de localidades pelos rebeldes? Deram-se conta de que as imagens de mortos foram substituídas por mapas e imagens aéreas sempre sem vítimas (salvo a meia dúzia de "colaterais" para dar mais credibilidade à coisa)? Lembremo-nos então de tudo isso quando agora nos falam de novo em chacinas unilaterais e nos dizem: "Alguma coisa tem de ser feita", que é uma forma moralizada de dizer "tem de haver uma intervenção armada contra uns e a favor dos outros".

Dir-nos-ão que não podemos permitir que os sírios sejam vítimas do bloqueamento da resposta por causa dos vetos chinês e russo na ONU. Lembremos-lhes então os povos da Palestina ou do Sahara Ocidental e de como têm sido vítimas de décadas de vetos dos mesmos que agora rasgam as vestes pela "urgência humanitária" na Síria.

O apelo à nossa melhor humanidade, àquela que se materializa em solidariedade sem fronteiras, não pode ser um apelo a que abdiquemos da inteligência. E a inteligência obriga-nos a levar em conta dois dados essenciais. Primeiro, que as revoltas democráticas no mundo árabe foram sequestradas pelos jogos geopolíticos: na guerra síria joga-se porventura menos a democracia do que a fragilização do Irão por Israel e pela Arábia Saudita. Segundo, que a urgência de fazer alguma coisa tem décadas de resultados desastrosos, armando até aos dentes os aliados de agora que serão os patifes de amanhã.

...................


--
Marcos Pinto Basto
Tel. 013 3467 4204

--
Você está recebendo esta mensagem porque se inscreveu no grupo "Tribuna Online" dos Grupos do Google.
Para postar neste grupo, envie um e-mail para tribunaonline@googlegroups.com.
Para cancelar a inscrição nesse grupo, envie um e-mail para tribunaonline+unsubscribe@googlegroups.com.
Para obter mais opções, visite esse grupo em http://groups.google.com/group/tribunaonline?hl=pt-BR.

0 comentários: