Uma  ética social ameaçada por uma moral individualista 
    Luiz Alberto Gómez de Souza*
    Há uma enorme polissemia quando se trata de definir ética e  política, variando dos gregos ao pensamento medieval, de Espinosa e Kant aos  existencialistas; também nas diferentes crenças ao largo da história têm  leituras próprias. Por isso, por rigor argumentativo, é preciso começar por  explicitar o que se entende por cada uma delas. Constroem-se definições  operacionais práticas, que não impedem outras definições possíveis.
     
    Por moral, entendo aqui as normas que regulam o  comportamento dos seres humanos em sociedade. Ela sempre existiu, de diferentes  maneiras, nas diversas culturas pelo mundo afora e normalmente expressa, nem  sempre coerentemente, um imperativo de procurar fazer o bem e evitar o mal. Tem  uma forte conotação individual.
     
    Por ética, temos o conjunto de valores (ou contravalores)  que orienta, numa determinada realidade, o comportamento social em relação à  vida em sociedade, para a manutenção ou para a transformação desta. Ela vai  moldar a presença na polis. Por isso a ética está intimamente ligada à  política, como foi indicado desde os gregos. Num texto de 1992, Betinho  escreveu: "política e ética andam sempre juntas. A questão sempre é de saber  para onde e para o bem de quem". Traz uma direção teleológica, isto é,  orientada aos fins.
     
    Sendo a política o exercício visando a coletividade –  repito, para mantê-la ou transformá-la –, ela concretiza os valores (ou  contravalores) da ética num processo histórico e espacial determinado. Se a  ética não se encarnasse numa política, permaneceria como princípios abstratos  socialmente irrelevantes. Ora, a política é a arte de gerir a sociedade num  processo normalmente longo, complexo e contraditório. Então, a ética vive essa  contradição e essa imersão no real, na tensão existencialmente dramática entre  o possível e o desejável. Rompendo-se a tensão numa decisão unilateral que opta  pelo possível, temos a redução conservadora da direita (ou de um certo  pós-modernismo), onde a ética se dissolve. Do outro lado, expressar apenas o  desejável, fora do processo contingente, seria cair num mundo dos ideais sem  corpo.
     
    Há uma esquerda radical que, em nome de um projeto ideal,  nega valor ao processo político concreto, inevitavelmente complexo e  contraditório, refugiando-se numa proposta ético-política sem raízes. Mesmo  dizendo-se muitas vezes marxista, não segue as lições do mestre, que indicava a  necessidade de subir do abstrato das intenções para o concreto das opções e das  ações. Esses dois extremos da cadeia simplificadora se tocam, uns petrificados  num real avesso às mudanças, outros refugiados num idealismo que não consegue  questionar a realidade contingente.
     
    A ética, num comportamento social, deveria estar dirigida  para o que o tradicional pensamento social cristão chama de bem comum que, no  dizer de Jacques Maritain, não é uma simples coleção ou somatória justaposta de  bens individuais, porém tem uma consistência essencialmente societária. Mas  frequentemente esta ideia de bem comum, quando desligada dos mecanismos reais  de dominação e de desigualdade das estruturas, na verdade se encolhe num bem  parcial de uns poucos privilegiados. A única maneira de universalizar de fato o  chamado bem comum será de colocá-lo no embate concreto na sociedade onde, para  usar expressões de Gramsci, as necessidades dos setores subalternos se  contrapõem aos privilégios dos setores dominantes. E aí a ética terá muito a  dizer, para desocultar, denunciar e propor.
     
    A moral, tal como definida acima, vai julgar os  comportamentos individuais neles mesmos. Ela se aproxima da ética social  reduzida ao possível e com ela pode se confundir. Nem uma nem outra questionam  a sociedade em sua heterogeneidade estrutural das desigualdades. Um bom exemplo  disso é a luta contra a corrupção. Não se nega sua importância – nem da chamada  lei da ficha limpa – desde que integrada num contexto ético de opções  políticas. Isolada, pode ser um sutil álibi para evitar entrar no debate  político da crítica à realidade tal qual existe. Bastaria penalizar alguns  corruptores, ativos ou passivos, e muitos setores ficariam em paz com sua  consciência, sem questionar os fundamentos básicos da sociedade em que vivem.  Temos aí o moralismo, que é a redução da ação política a essa moral  individualista, que mascara e oculta a trama desigual da realidade social.
     
    Vejamos como o moralismo foi se manifestando no Brasil,  expressado basicamente pelos mesmos setores em diferentes momentos da história  contemporânea. No começo dos anos 50, governo Vargas, num processo de  construção da nação (do qual o "nosso petróleo é nosso" foi um símbolo), Carlos  Lacerda e a chamada banda-de-música da UDN (constituída por parlamentares  bacharéis de boa oratória), destilavam sua raiva azeda. Denunciavam desde um  empréstimo menor do Banco do Brasil ao periódico Última Hora (que cometera o  crime de não se alinhar com a mídia dominante), passando pelo balcão de favores  miúdos de humildes e obtusos seguranças do presidente, para chegar à denúncia  estrepitosa de "um mar de lama" nos porões do regime. Tudo isso encaminharia  lideranças militares a propor o afastamento de Vargas, levando este ao gesto  último de um suicídio denunciador. Lembremos como isso abalou os setores  populares do país, levando Lacerda, apodado de "o corvo do Lavradio", a  esconder-se para fugir da ira popular.
     
    Depois tivemos o histriônico Jânio, com sua vassoura, eleito  presidente com o apoio dos mesmos setores lacerdistas, mais interessado numa  moral caricata de proibir os biquínis e as rinhas de galos do que de enfrentar  os problemas éticos reais do país. Nesse caso, um provável estado etílico o  levou a renunciar. Anos depois, tivemos o apoio desses mesmos setores ao golpe  militar de 64, insistindo no tema da corrupção, agora somado ao da subversão,  para evitar projetos de "reformas de base", ameaçadores de privilégios  fundiários ou exigindo acesso ao trabalho e uma tributação menos injusta. Mais  tarde veio o Collor da luta contra os marajás, os quais não eram vistos como um  setor dominante, mas como pessoas que se enriqueciam indevidamente. Descoberto  ele mesmo como sendo um deles, desta vez veio o impeachment. Boa parte do  eleitorado que apoiou esses políticos e apoiou o golpe era constituída por  setores das classes médias urbanas pouco sensíveis às injustiças estruturais,  guiada pela grande imprensa sua aliada e mentora.
     
    Vamos descobrindo assim uma opção de priorizar a denúncia  dos deslizes morais individuais, a fim de ocultar o grande escândalo ético de  um país das desigualdades. Uma elite atrasada e voraz, com seus meios de  comunicação, envolve esses setores médios – transformando-se em seu  "intelectual orgânico" -, para evitar a indignação diante dos crimes dirigidos  contra os pobres, marginalizados do bem comum. Ao tocar nesse último ponto vem  logo, por parte de seus teóricos, a denúncia de populismo de quem os assinala,  Getúlio, Jango, Brizola, Lula e agora Dilma. No caso concreto do Brasil,  soma-se a isso um preconceito dos que não conseguem suportar a liderança de um  operário que não surgiu dos círculos habituais do poder. Como disse Luís  Fernando Veríssimo, um simples da Silva ocupou o lugar destinado aos Bragança.
     
    Chegando aos dias de hoje, há uma coincidência pelo menos  suspeita entre os prazos do julgamento do chamado "mensalão" e o final do  período eleitoral. Merval Pereira, epígono menor do velho lacerdismo, já abriu  o jogo e assinalou com avidez incontida, a simultaneidade da possível  condenação de políticos do PT, com os dias que antecederão às eleições. As  punições, para ele, deveriam ter um impacto imediato nos resultados eleitorais.  Mais do que isso, a sociedade seria levada a crer que, resolvendo essas tensões  morais individuais, esqueceria e passava ao largo das exigências de uma ética  social já aplicada nas políticas sociais do governo, hoje integrando milhões de  brasileiros à produção, ao consumo e à participação cidadã. A mídia, deformando  o processo no STF, foi desenhando a caricatura teatral do que seria para ela "o  maior acontecimento da história do país"! E vai se fazendo de um relator –  aliás nomeado por Lula, como vários outros ministros, com critérios jurídicos e  não de clientela -, uma espécie de anjo exterminador, ainda que provavelmente  não seja essa sua intencionalidade pessoal. Mas, já com um futuro político  garantido, o elevam como herói da classe media moralista e, de forma bastante  compreensível, também de uma ultra-esquerda principista. Duas vertentes que, no  Rio, se unem no apoio a Freixo do PSOL, embaçando um itinerário pessoal  anterior de coragem moral e de denúncia ética.
     
    Não podemos esquecer que o chamado valerioduto foi  construído a partir de 1998 com o PSDB de Minas Gerais, na campanha de Eduardo  Azeredo, assim como antes tivéramos a privataria escandalosa dos tempos de FHC.  Mas as denúncias de agora, com a revista Veja à frente de um cartel na mídia,  são seletivas e tantas vezes irresponsáveis e falsas. Elas mais escondem do que  desocultam. Como lembrou numa brilhante intervenção no parlamento o senador  Jorge Viana, os dois últimos governos deram um crédito de confiança à Polícia  Federal como órgão investigador e colaboraram para que o Supremo e o STJ  ficassem cada vez mais independentes. Se hoje aparecem à luz do dia os  malfeitos, é porque o aparelho do estado tem mais liberdade e independência, o  que fortalece o processo democrático. Mas o mesmo senador alerta que, como anos  atrás, também num momento pré-eleitoral das primeiras denúncias, há no ar uma  intenção anti-democrática oculta de sonhar com um golpe branco, para sustar o  processo de avanços sociais e para destruir um Lula intolerável por sua grande  aceitação popular.
     
    Em 2005, no começo da apresentação em conta-gotas dos  escândalos pela mídia, numa tática de desgaste gradual, o PT não soube reconhecer  com coragem seus erros e deformações internas. Foi quando seu presidente  interino, Tarso Genro, lançou a ideia certeira e lúcida de "refundar o partido"  e rever a fundo costumes e ações. Não se elegeu como presidente nas eleições  internas seguintes. O PT perdeu ali uma grande oportunidade histórica, pela  resistência de um núcleo duro que fora entrando na lógica costumeira dos outros  partidos. Não esqueçamos que membros do PT resvalaram para velhos hábitos das  forças políticas, alguns como aprendizes amadores mirins, como o  secretário-geral acusado de receber um mísero Land Rover. Outros possivelmente  não se desvencilharam de um passado aparelhista, de uma velha esquerda que quer  permanecer no poder a todo custo.
     
    Porém as velhas raposas, profissionais nessa área, chamem-se  Sarney ou ontem ACM, faziam pior, mas não deixavam rastos. Já Maluf, com total  cinismo, nem se dá o trabalho de ocultar seus atos. Há uma indicação  inquietante que vem do Maranhão. Jackson Lago, que conquistou o título de melhor  prefeito do país, foi eleito governador em 2006, numa virada surpreendente,  terminando com quarenta anos de coronelismo dos Sarney. Com apenas cinco meses  de governo, foi acusado de corrupção envolvendo familiares. Em 2009, o TSE  anulou os votos de Jackson, o que permitiu a posse de Roseana Sarney, segunda  colocada, que sempre conseguiu habilmente esquivar-se de acusações que pairavam  sobre ela, a não ser no momento de um vale-tudo dentro da própria oposição, na  luta por uma candidatura à presidência que poderia fechar o caminho para Serra.
     
    Isso leva à necessidade de rever as políticas de alianças  aéticas e esdrúxulas que, em nome de uma possível governabilidade e a alto  preço, apenas servem para reforçar o clamor moralista. Melhor seria o governo dirigir-se  às forças vivas do tecido social, especialmente movimentos sociais, como  verdadeiros aliados e grupos de pressão da sociedade.
     
    Aqui vemos, como em tantos países, a crise de legitimidade  de boa parte dos partidos, que não se pode confundir com crise da democracia.  Saindo de vinte anos de governo militar temos de ser muito cautelosos a  respeito. Há que apelar para a sociedade, como sujeito primeiro da participação  política. Com ela se poderia superar a pouca confiabilidade de uma  representação nas mãos de bancadas conservadoras, como a dos ruralistas, que se  elegem pelo poder do dinheiro.
     
    Ainda que pareça difícil, as eleições vindouras deveriam ser  o momento de uma profilaxia da política. Por isso, os setores dominantes e a  mídia a seu serviço tratam, pelas denúncias moralistas, de evitar que  resultados eleitorais revejam a representatividade da força hegemônica do  capital. O teste eleitoral próximo poderia servir para ver se o teatro montado  em torno ao "mensalão" será ou não levado em conta por uma parte importante da  população. Esta sente claramente no seu cotidiano um processo de mudanças,  talvez não com a celeridade desejável, mas que vem enfrentando, aos poucos, os  marcos estruturais da dominação secular das elites. Aqui a política, a partir  de uma ética social transformadora, poderia superar as resistências poderosas  de uma moral individualista e farisaica dos donos do poder real na sociedade.
    
  *Luiz Alberto Gómez de Souza é sociólogo 
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