Videla, o inferno é pouco

sexta-feira, 17 de maio de 2013
Videla, o inferno é pouco

CHIQUI AVALOS 17 de Maio de 2013 às 14:10

Essa morte tem um significado especial. Ela nos faz lembrar que os canalhas e os monstros também cumprem o seu determinismo biológico. Eles morrem, assim como aqueles que foram por eles mortos

Morreu um homem profundamente católico, que viveu em um apartamento modesto num bairro de classe média de Buenos Aires. Casado com a mesma mulher há mais de meio século, pai de vários filhos, avô amoroso de muitos netos, comia raviólis aos domingos no restaurante da esquina depois de voltar da igreja, de terno escuro e com a Bíblia pendendo em uma das mãos. Católico praticante, comungava e era temente a Deus. Magérrimo, seu rosto afilado, seu caminhar lento e despreocupado e a permanente expressão de tranquilidade lhe valeram o apelido familiar de "pantera cor-de-rosa".

Ele jamais alterou a voz com quem quer que fosse, era cordato, educado e seus camaradas de caserna o tinham na conta de um soldado profissional, extremamente disciplinado e de um homem sério e absolutamente correto. Sua ficha no exército argentino é totalmente imaculada. Enfim, um soldado superlativo. Um cidadão acima de qualquer suspeita. Um pai de família decente.

Os dados biográficos acima, todos eles verdadeiros, são de um genocida. Um monstro. Um assassino. Um soldado que traiu sua Pátria, mergulhando-a numa ditadura que gerou mais de 30 mil mortos e desaparecidos. Um ministro que traiu a sua presidente, depondo-a numa quartelada infame. Um ditador que destruiu a economia de seu país, destroçando-a, produzindo o maior desemprego jamais visto, uma desindustrialização terrível, seguida de recessão e fome. Foi o maior responsável pela pior das ditaduras jamais conhecidas em todo continente.

A história registra os anos de dor e sangue sob a égide de seu império. A memória teima em recordar os que foram arrastados pelos cabelos ou pelas dúvidas. Os livros eternizam o suplício de mães que pariram filhos nos cárceres antes de serem mortas e seus corpos, violados e mutilados, mergulharem de aviões da Força Aérea para a escuridão do Rio da Prata. Seus filhos – suprema e dolorosa ironia – foram adotados pelos torturadores e carcereiros. Dois deles, um belo casal de rechonchudos bebês, hoje são os herdeiros da madame Herrera de Noble, dona do Clarín, o maior jornal do país e chefe da oposição ao governo de Cristina Kirchner. Ela os recebeu de presente, como quem recebe uma cesta de café-da-manhã. Cidadãos foram arrancados de suas casas em plena madrugada e tiveram bens e vidas roubadas. Mães vagam pelas praças do país, ainda hoje, com lenços nas cabeças brancas e chagas nos corações despedaçados recitando nome e sobrenome de filhos que jamais, jamais, jamais reencontrarão. Algumas beiram os 80 ou 90 anos. Mas continuarão seu cantochão de dor e fidelidade ao pedaço arrancado até o fim de seus dias. Elas, porém, sobreviveram ao assassino de seus meninos.

A Argentina deu um exemplo imorredouro ao mundo, quando Raul Alfonsín, um homem digno, sentou a horda de criminosos de farda no banco dos réus e os condenou à prisão perpétua. O calhorda Menem os soltou. Néstor Kirchner, homem de coragem, os levou de volta aos cárceres de onde nunca deveriam ter saído. E foi lá, num deles, antes que o galo cantasse numa fria manhã portenha que o pulcro e catolicão genocida partiu em sua dolorosa viagem rumo ao umbral, de eterna condenação e proscrição, descrito por Dante em seus cantos imortais e divinos.

A herança católica, o falso moralismo, a piedade de merda, a hipocrisia, ainda vicejam no continente onde as ditaduras brotaram como cogumelos do diabo em pasto coalhado de tiranos e tiranetes. Mas qual a razão de não se sentir certo alívio ou mesmo se comemorar a partida de um brutal e cruel torturador e assassino? Não chegaremos ao sadismo dos comandados do morto, que na ESMA, a celebérrima e cinzenta Escola de Engenharia da Armada, abriam champanhe, cantavam tangos, dançavam, gargalhavam, se masturbavam ou agrediam sexualmente as mulheres presas durante as sessões intermináveis de tortura, suplício e tormento. Mas essa morte tem um significado especial. Ela nos faz lembrar que os canalhas e os monstros também cumprem o seu determinismo biológico. Eles morrem, assim como aqueles que foram por eles mortos.

Todos nós, em alguma medida, somos um pouco argentinos. Mesmo que nos irritemos ou simulemos alguma irritação com o esnobismo - entre pedante e charmoso – de nossos irmãos platinos, nunca deixaremos de nos emocionar ouvindo um tango do imortal Gardel ou o bandoneón mágico de Piazzolla, vendo as cores divinas de Berni e Xul Solar, lendo os geniais Borges, Arlt e Cortázar, escutando Mercedes Sosa ou Yupanqui, recordando os gols ou acompanhando a triste sina de Maradona, o anjo caído, ou apascentando nossa alma de esquina em esquina na espetacular arquitetura de Buenos Aires. Definitivamente, os argentinos são especiais. Muito especiais. São um grande povo e não mereceriam jamais o flagelo pelo qual passaram. Nenhum povo, jamais, nunca, em tempo algum, merecerá aquilo pelo qual passou o nobre povo argentino.

Jorge Rafael Videla, General de Exército, traidor de sua pátria, ditador cruel, assassino brutal e genocida. Sua condenação perpétua será nossa memória. E ela não morrerá.


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