Sobre amantes da ciência e supersubalternos

segunda-feira, 29 de novembro de 2010

Sobre amantes da ciência e supersubalternos – parte I


Qual a diferença entre uma faxineira com 1º grau incompleto que trabalha em uma empresa horrível por um salário mínimo e pouco e um cargo-de-confiança com pós-graduação no exterior em uma prefeitura de uma grande cidade que ganha dez salários mínimos? Além do salário, de em quantos cada um manda e do quanto se pensa que cada um se sente ou tem que se sentir realizado, talvez seja bem menos do que muitos pensam.

Alguns falam que existe uma conspiração politicoeconômica para deixar a classe oprimida na ignorância, e esse ardil faz a escola pública ser de má qualidade, os jornais escritos e os noticiários de rádio e televisão encobrirem notícias realmente importantes, o povo não se interessar por política e a televisão passar lixo intelectual nos dias e horários em que o trabalhador costuma estar em casa e acordado. Mas mesmo que isso seja verdade (e eu não duvido que seja), por que o indivíduo mediano da classe oprimida não valoriza quando pode ler um texto inteligente, por exemplo? Me lembro de ter lido, em um livro cristão em uma parte falando sobre salvação, que a diferença entre um porco e uma ovelha é que na lama a ovelha berra pra ser tirada de lá enquanto o porco se chafurda. Podemos aplicar isso aqui.

Nós nunca ouvimos falar em reformas educacionais de verdade, para melhorar o aprendizado, estimular o raciocínio lógico-matemático e criar um gosto pela ciência na educação básica. O mais próximo disto foram programas que parecem ter sido escritos por uma equipe de semianalfabetos do meio do século XX que pensam que estudar é coisa de vagabundo e pedagogas medíocres tentando falar como Paulo Freire, sempre para deixar o currículo mais pobre do que já era.

O Brasil não valoriza o conhecimento como pareceria a um turista que visse algo como o Todos Pela Educação. Se um pai quer o filho com pelo menos o 2º grau, é porque vê o diploma, não o conhecimento, como escada para um emprego com mais status e um salário maior. Por isso não se faz grandes protestos por causa de estudantes que saem quase analfabetos do Primário (1ª a 4ª série, ou 5ª no "1º grau de nove anos"), do "1º grau de nove anos" sem escrever um texto decentemente, do 2º grau sem conseguir fazer um problema que use duas fórmulas ou, como noticiado na página da revista Época, cerca de um terço das pessoas com 3º grau completo ou em curso não plenamente alfabetizadas. Muito menos que isso levaria à queda do ministro da Educação em um país sério (lembrando que não se faz uma classe política séria em um país de povo medíocre).

Séculos de pesquisas, estudos e pensamentos, e de lutas para torná-los públicos e aproveitados para o bem comum foram reduzidos a conteúdos que são um empecilho estúpido para um diploma que será o passaporte para a massagem do ego, a ostentação socioeconômica e intelecual, algumas marias-gasolina diferentes por fim de semana para os meninos e um casamento (se houver) com um homem com pelo menos o dobro de salário e status para as meninas.

Outro mau uso da ciência é como meio de produção para granjear dinheiro e gratificação do ego. Alguns que podem ganhar dinheiro sendo bóias-frias melhorados ou vendedores de informação e tecnologia, não cientistas, não se incomodam se o mundo descer ao Inferno se o Diabo pagar bem.

Qualquer pessoa com apenas um 2º grau decente da década de 90 bem feito já percebeu que não apenas a alienação, o mau gosto e o analfabetismo funcional se difundiram entre a massa mas também que a massa pensante e as pessoas em posição de decisão tem mais autoridade hierárquica do que intelectual e moral. Para o populacho, além de o colega de escola que estuda ser no mínimo esquisito, a atividade intelectual é competência de meia dúzia de iluminados e ser pensante é uma espécie de blasfêmia. Suspeito que o objetivo de suscitar a questão filosófica sobre a validade dos sentidos para entender o mundo seja mostrar que o que nós vemos como azul não é sem cor, mas vermelho, e meia dúzia de iluminados vêem o objeto azul com a cor vermelha que tem. Mas como dizia Renato Russo, "quem pensa por si mesmo é livre, e ser livre é coisa muito séria".

Se você escolheu um curso técnico ou universitário por gosto pela área do conhecimento em si e por desejo de contribuir para a coletividade, e fora isso lê um livro de alguma outra área de vez em quando, terá de se preparar para ser um cientista pensante fora do mercado de trabalho ou do ambiente acadêmico. Isso vai parecer algo como PT antes de chegar ao governo, mas deixe estar. É o meu caso, e por isso eu criei o blogue Transporte Coletivo Urbano

Walter Nunes Braz Júnior

Parte II (Transporte Coletivo Urbano)


Sobre amantes da ciência e supersubalternos – parte II

Com poucas exceções, como a Economia, a ciência é incentivada ou permitida especialmente enquanto atende algum interesse como aumento de lucros, vantagem sobre os concorrentes ou vaidades pessoais de alguma elite.

Vejamos alguns problemas bestas no transporte coletivo:

  • 1 - Um usuário de ônibus espera vinte minutos em um ponto em que quatro linhas o atendem, até chegarem 2, 3 ou até 4 ônibus juntos.

  • 2 - Um usuário de ônibus morador da periferia precisa usar duas linhas para chegar a um ponto de interesse, e paga duas tarifas, ou uma e meia, enquanto um usuário de um bairro residencial de classe média paga menos para chegar ao mesmo destino.

  • 3 - Se um usuário pega um ônibus lotado para desembarcar a 20 ou 30 quilômetros de distância, fará a viagem de uma hora e pouco em pé.

  • 4 - Salvo para moradores de regiões bem adensadas, os horários do usuário se ajustam aos do sistema de ônibus, e não vice-versa.

  • 5 - A tarifa é "os olhos da cara" – e está sempre defasada.

Problemas tão primários terão sido comuns por décadas por falta de estudiosos para solucioná-los?

Todos os problemas da lista têm explicação técnica. Esse é só mais um problema para a lista: o especialista tem o papel de dar explicações técnicas ou que pareçam técnicas – isso quando há a preocupação de explicar algo para alguém.

Vejamos o ambiente do profissional da área de transporte urbano, em geral. No princípio, a cidade era um "ovo". Depois, a especulação imobiliária, com a cumplicidade de políticos desonestos, abriu u'a massa desorganizada de loteamentos, onde o morador mal terá um centro regional ou uma via com concentração de estabelecimentos comerciais a uma distância que possa ser percorrida confortavelmente a pé, e isso se o próprio inchaço da região levar a tanto. Não raro, vias coletoras foram criadas como locais, vias arteriais foram criadas como coletoras ou até locais e áreas comerciais ou bairros de classe média começaram como bairros residenciais pobres em uma área indesejada e com um traçado viário horrível. Quando centralizar a cidade do Centro (ui!) ficou inviável, teve que se criar um outro centro ou alguns centros regionais razoáveis. Algo assim aconteceu com Minas Gerais no fim do século XIX: a capital Ouro Preto não podia crescer, então foi preciso criar Belo Horizonte, a primeira cidade planejada do Brasil. Coisas assim são freqüentes nas histórias de nações, cidades e indivíduos: refletir, pesquisar, se aperfeiçoar, amadurecer, tomar decisões ousadas não para desfrutar dos benefícios da maturidade, da inteligência, da ciência, da coragem ou da diligência, mas para superar as conseqüências dos próprios erros.

Então, chega o cientista do transporte urbano, para resolver problemas que não existiriam se técnicos como ele tivessem sido ouvidos enquanto a "cagada" ainda não estava feita. Pra piorar, a campanha eleitoral do prefeito foi patrocinada pelas empresas de ônibus da cidade, então ele será serviçal de "porco capítalista" por tabela. Pra piorar ainda mais, entre ele o prefeito ainda poderá haver um sobrinho do prefeito ou uma amante de um vereador. Então, ele será refém da avaliação de desempenho (Art. 41 CF), será perseguido por um superior medíocre que tem medo ou ódio da sua competência e da sua estatura e sua grande competência técnica e intelectual será, com sorte, uma ferramenta para cumprir ordens. Pra que serve uma pós-graduação no exterior num contexto destes, além de uns pontos a mais na prova de títulos e um posto com um ou dois salários mínimos a mais? Para alguns que vivem do status e de como os outros pensam que eles são realizados por ter a renda que têm, tudo bem.

Como a ciência não tem a permissão de dar o seu potencial, temos aqui alguns fatos corriqueiros:

  • 1 - A bilhetagem eletrônica é um arremedo de integração físico-tarifária que é uma alternativa para não fazer não só uma reestruturação do sistema de transporte coletivo que envolveria obras de construção civil como sequer um rearranjo das próprias linhas já existentes.

  • 2 - Estações de integração viram campanha eleitoral mal disfarçada.

  • 3 - Painéis eletrônicos em alguns pontos de ônibus, com informações baseadas em localização por GPS de cada ônibus, são usados dentro do mesmo sistema em que algumas linhas têm intervalos grandes (imaginemos o usuário vendo no painel que seu ônibus tem a previsão de chegar em 30 minutos).

A humanidade nunca precisou da propriedade intelectual – quem precisou foram algumas pessoas físicas e jurídicas oportunistas. Quem disser que as empresas pararão de investir em ciência se perderem a propriedade intelectual está querendo dizer que uma indústria de medicamentos não é um grupo da área da saúde, mas uma indústria capitalista que vive de lucrar com a doença alheia. A humanidade também nunca precisou de supersubalternos, os especialistas com status e bons salários que, enredados pela própria vaidade, são tão reféns dos empregadores ou dos clientes quanto um empregado em um emprego desprezível sem grandes perspectivas de conseguir algo melhor. O que a humanidade precisa é de pessoas não só inteligentes como com coragem de pensar e agir. Ninguém entrou pra História ou se tornou admirado cumprindo ordens.

Walter Nunes Braz Júnior

Parte I (Diário do Poste)




 

--
Você está recebendo esta mensagem porque se inscreveu no grupo "Tribuna Online" dos Grupos do Google.
Para postar neste grupo, envie um e-mail para tribunaonline@googlegroups.com.
Para cancelar a inscrição nesse grupo, envie um e-mail para tribunaonline+unsubscribe@googlegroups.com.
Para obter mais opções, visite esse grupo em http://groups.google.com/group/tribunaonline?hl=pt-BR.

0 comentários: