Um tribunal opiniático

segunda-feira, 1 de outubro de 2012
Wanderley Guilherme dos Santos


Nem só a política, mas toda atividade humana deve respeitar normas de conduta compatíveis com a crescente civilidade da convivência social. Dentistas, sapateiros e todas as demais ocupações próprias ao ser humano devem respeitá-las. Inclusive os praticantes da ambiciosa tarefa, algo extraordinária, de julgar seus semelhantes, apontá-los à execração e priva-los de liberdade. Fazer da ética uma exigência exclusiva ou especial da ação política contraria o código de valores que se consolida a partir do Renascimento, atravessa o Iluminismo do século XVIII, aquele de Jean Jacques Rousseau e de Cesare Beccaria, e se inscreve no espírito das leis correntes. Direitos e deveres fundamentais, hoje, excluem privilégios ou isenções a indivíduos ou grupos. Milênios distantes da concepção, por exemplo, que permitia a um cidadão ateniense (excluídos, pois, metecos, mulheres e escravos) executar diretamente qualquer condenado que encontrasse pelo caminho. Igualmente abandonadas as diversas noções de graphé, em particular a de graphé paranomon, que submetia a severíssimas penas, inclusive a de ostracismo ou de morte, juízes ou promotores públicos cujas propostas ou deliberações se revelassem contrárias às leis da cidade ou ameaçassem a segurança de seus cidadãos. Legislar e julgar equivalia a aceitar compromissos perigosos. Ao contrário do progresso moderno, sabe-se, em que não há punição para falhas de sentença ou fracassos políticos e só as vítimas padecem suas conseqüências. Pois não existem erros inócuos em matérias públicas.

 

Sentenças polêmicas não faltam na Ação Penal 470. Processo multifacético, compreende ilícitos eleitorais, crimes de colarinho branco, apropriações indébitas, desvios de recursos em conexões as mais variadas e, algumas vezes, independentes uns dos outros. O prazer de punir, associado a estereótipos sobre o que devia ser a vida política, têm impedido juízes do Supremo captarem implicações essenciais do processo. Se a existência de um caixa 2 quase que obriga ao cometimento de mais de um ilícito, vários outros decorrem de oportunidades clandestinas e não são conseqüências necessárias do processo original. Buscar a causa eficiente do início do processo seria indispensável a uma avaliação produtiva, não apenas punitiva, de um aspecto generalizado na competição político-eleitoral brasileira. Financiamento de companheiros do mesmo partido ou de partidos aliados, com recursos de origem lícita ou ilícita, não constitui mero problema a ser escamoteado pela referência à legislação que permitiria tais ajustes dentro de normas legais. O irrealismo da lei diante das condições efetivas da competição, condições impostas pelo legislador e pela justiça eleitoral, fica inocentado quando se atribui exclusivamente à má fé do infrator a responsabilidade pela infração. Lembra a surpresa de John Stuart Mill, candidato derrotado a uma cadeira na Câmara dos Comuns, conforme consta de referências biográficas: Antigamente era preciso possuir uma fortuna para alguém poder eleger-se (período do voto censitário severo), hoje é necessário gastar-se uma. Estávamos em meados do século XIX, com o eleitorado inglês correspondendo a não mais do que 6% da população.

 

A legislação eleitoral brasileira é falha, contraria em última análise algumas leis fundamentais do país e ameaça a segurança jurídica dos cidadãos. Para ocultar essa condição antecedente os juízes parecem prontos a determinar o ostracismo daqueles réus cuja visibilidade seja suficiente para ofuscar a ocultação. Nesse afã, comentários togados a fatos eleitorais e políticos revelam assustadora imperícia na atribuição de sentido a esses fatos, tomados como indiscutíveis evidências de gravíssimos crimes. O risco de que a sentença final seja informada por essas interpretações canhestras, em acréscimo às adequadas provas jurídicas, é uma ameaça à sociedade política brasileira, não somente aos eventuais sentenciados de agora.

 

Ouve-se que migrações partidárias seriam robusto indicador de compra de votos. Fora a substituição da expressão "ajuda financeira a aliados" pela expressão "pagamentos para compra de votos" – que é justamente o que se pretende provar, não uma premissa válida de argumento - a singularização de um movimento em particular é desautorizada pela freqüência e generalização do fenômeno. Migrações partidárias ocorrem em dois momentos da política brasileira: depois de eleições majoritárias, parlamentares e partidos desejando se aproximar do poder – vide modificações nas bancadas partidárias depois da posse de Fernando Collor e Fernando Henrique Cardoso, por exemplo, e, claro, também depois da posse de Luiz Inácio Lula da Silva; antes das eleições, com parlamentares buscando abrigo em legendas que lhes ofereçam melhores perspectivas de vitória – caso paradigmático, aqui, o de Marina Silva, transferindo-se do PT para o PV em busca de uma candidatura à Presidência. E isso ocorre a cada dois anos, claro, com eleições em níveis diferentes, mas submetidas aos mesmos condicionantes. Não constitui, em si, prova de crime algum. Monumental migração tendo em vista futuras eleições ocorreu em 2011, depois da moralizadora lei de fidelidade partidária, com a criação do PSD, por Gilberto Kassab, hoje detendo 48 deputados federais, a quarta maior bancada da Câmara, nenhum deles eleitos por essa legenda. Quem comprou os votos dos parlamentares do PSD?

 

Ouve-se que acordos políticos envolvendo ajuda financeira, dentro das inócuas leis, estariam bem, mas a votação dos partidos ajudados em alinhamento com o partido ajudante seria imoral, degradante, corrompido. Em que se manifestaria o apoio do partido ajudado, caro magistrado? Em inauguração de retratos nas sedes dos partidos subsidiados? O acordo político pode consistir em mais do que ajuda financeira, e é notória a distribuição de postos governamentais a partidos aliados em contraponto ao apoio parlamentar. Se é para discriminar qual o tipo de "moeda" aceitável nos acordos, tudo bem, tese respeitável, mas que deve ser discutida francamente. Para mim, trata-se de um juízo de exceção aceitar acordo envolvendo cargos governamentais e, discricionariamente, incriminá-lo, interpretando as votações como "atos de ofício" a provarem o "pagamento" do voto comprado.

 

São abundantes as ilustrações das distrações de análise dos magistrados do Supremo. Mas, terrível, sobretudo, é a inovação epistemológica proposta pela intervenção suavemente facciosa do ministro Ayres Brito. Defende ele que a pergunta a que os indiciados devem responder cabalmente não é a direta e simples: o senhor tinha conhecimento de que se tratava de dinheiro ilícito? (ou acusação semelhante, sempre envolvendo o essencial aspecto cognitivo), mas esta outra: era possível o senhor não saber do ilícito? Pois bem, trata-se de ardil lógico perverso, praticamente impossível de ser respondido inocentemente. No artigo V de Pensées, "A justiça e a razão dos efeitos", Pascal se refere a uma ignorância sábia de si mesmo. Ignorância socrática à parte, a expressão de Pascal é falaciosa, posto que só os limites do conhecimento nos é dado ter consciência e sabedoria, mas é impossível conhecer a extensão do que ignoramos, exceto se soubéssemos o conteúdo do que ainda não conhecemos – o que é, obviamente, contraditório. Analogamente, a inovação epistemológica de Ayres Brito só admite duas respostas: não sei – o que, na interpretação subentendida significaria que, de fato, não existiriam condições possíveis de ignorância da matéria – uma confisssão, portanto; ou expondo as circunstâncias de todas as circunstâncias em que não poderia ter conhecido todo o conteúdo das ações alegadamente criminosas – e só descrevendo os limites da extensão de sua ignorância a comprovaria – outra forma de confissão. O ministro Ayres Britto está sugerindo a substituição da defesa com base nos limites do conhecimento pela obrigação do réu comprovar a extensão de sua ignorância. Falácia perversa.


Alguns comentários togados têm margeado a volúpia tirânica. Não tão distantes de Hobbes, que considerava a reunião de duas pessoas como evidência de conspiração criminosa, sem atender à razão do encontro, base suficiente para pesada condenação, inclusive à morte, apartes variados têm contribuído para a degradação da atividade política, discursos bem intencionados não obstante. Especulo como reagiriam ao saber que os eleitores atenienses eram pagos para votar, a partir do final do século V. Chamava-se ekklesiastikon, tal pagamento, e tenho a evolução do valor dessa "compra", se alguém ficar curioso.

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